Gostaria de compartilhar o texto da minha colega advogada Vanessa Arisio de Lucca OAB/SC 13.984-B, tendo em vista a importância do tema, vez que atualmente a Impenhorabilidade da Pequena Propriedade Rural é muito discutida em nosso ordenamento jurídico.
Assim como o imóvel destinado à moradia não pode ser retirado de seu proprietário, para pagar suas dívidas pessoais (em regra, pois há exceções[1]); uma área rural, explorada, pelo proprietário agricultor, para a subsistência sua e de sua família, também não pode ser penhorada para garantir dívidas oriundas, direta ou indiretamente, da atividade rural.
Ocorre que, para que esse segundo princípio tenha efeito real na vida do agricultor e de sua família, as normas que o regem devem ser examinadas com precisão e juntamente com as circunstâncias particulares do caso. Por exemplo, é necessário averiguar se: a dívida contraída está relacionada à atividade rural (financiamento de insumos, máquinas agrícolas); o agricultor possui outros meios de obter renda e sustentar a família; o tamanho da área rural explorada.
Para sabermos quando o caso se enquadra na proteção, é necessário verificar, primeiramente:
- o que é uma “pequena propriedade rural” ?;
- qual o tamanho da área que pode ser protegida ?
A denominada “pequena propriedade rural”[2], referida na Constituição Federal de 1988 e nos Códigos de Processo Civil (de 1973 e 2016), deve ser reconhecida a partir do que dizem estas normas:
– Estatuto da Terra (Lei 4.504/64, artigo 4º), o qual diz o que é propriedade familiar e módulo rural;
– Lei nº 8.629/93, artigo 4º, II, a), que coloca o limite de tamanho de uma PPR; e
– Regulamento expedido pelo INCRA, que diz o tamanho de um módulo fiscal nas diversas regiões.
O Poder Judiciário Catarinense, julgando casos concretos, de penhora em processos de execuções contra agricultores, tem aplicado essas regras, como passamos a mostrar (citando um resumo de uma decisão sua, tecnicamente chamada de acórdão):
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE[3]. IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL RURAL. EXEGESE DO ART. 5º, INCISO XXVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 649, INCISO X, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E DO ART. 4º DA LEI N. 8.629/94. INEFICÁCIA DA PENHORA. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. MÓDULO FISCAL ESTABELECIDO PELO INCRA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
É absolutamente impenhorável o bem imóvel no qual os devedores residem e desenvolvem a atividade rural familiar, principalmente quando a dívida decorre de sua atividade e o bem constritado se enquadra no conceito de pequena propriedade rural, por que não exceder a quatro módulos fiscais.
Conforme se extrai do voto do juiz relator dessa decisão, módulo fiscal é o seguinte:
Voto
….
Ademais, deve-se ressaltar que a Lei n. 4.504/1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra, define a expressão “propriedade familiar” e “módulo rural“:
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
I – “Imóvel Rural”, o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada;
II – “Propriedade Familiar”, o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;
III – “Módulo Rural”, a área fixada nos termos do inciso anterior;
[…].
Assim, tratando-se de propriedade familiar, cabe avaliar se encaixa o presente caso na definição de pequena propriedade. E, no caso sub-judice, também não se pode abandonar o disposto no artigo 4º, inciso II, alínea “a”, da Lei n. 8.629/93:
Art. 4º Para os efeitos desta lei, conceituam-se:
I – Imóvel Rural – o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária,extrativa vegetal, florestal ou agro-industrial;
II – Pequena Propriedade – o imóvel rural:
- a) de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais;
Frisa-se que, no município de Trombudo Central, um módulo fiscal equivale a 18 hectares, de acordo com a Instrução Especial n. 20/1980 do Incra, e verifica-se que o imóvel possui área total de 278.965,00 m², ou seja, 27,8 hectares. Portanto, pode ser considerado pequena propriedade rural, pois não ultrapassa o limite de quatro módulos fiscais da legislação supracitada.
Há outras decisões, da Justiça Catarinense, reconhecendo como pequena propriedade rural a área de até 4 módulos fiscais[4].
Em suma, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem conferido impenhorabilidade a áreas rurais em situações que reúnam as características destacadas (grifadas) nos resumos de decisões judiciais:
IMÓVEL RURAL. Impenhorabilidade. Penhora desconstituída. Insurgência. Área inferior a dois módulos fiscais da região. Pequena propriedade. Empréstimo contraído em favor desta. Fonte de subsistência. Bem de família. Garantia constitucional. Desmembramento. Inviabilidade. Agravo desprovido. A pequena propriedade rural, donde o devedor extrai a sua subsistência e de sua família, é impenhorável. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2014.014053-4, de Forquilhinha, rel. Des. José Inacio Schaefer, Quarta Câmara de Direito Comercial, j. 19-08-2014);
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE CÉDULA DE CRÉDITO RURAL, COM GARANTIA PIGNORATÍCIA. …. AFASTAMENTO DA PENHORA INCIDENTE SOBRE DOIS IMÓVEIS RURAIS. ANÁLISE DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS PARA A IMUNIZAÇÃO DOS BENS RURAIS. SOMATÓRIO DAS ÁREAS PENHORADAS E DE OUTRAS DE PROPRIEDADE DO RÉU QUE SE AMOLDA AO CONCEITO DE “PEQUENA PROPRIEDADE RURAL“, AINDA QUE POSSUAM MATRÍCULAS INDIVIDUALIZADAS, SOB PENA DE POTENCIAL INVIABILIZAÇÃO DA ATIVIDADE RURAL DE SUBSISTÊNCIA À LUZ DA PRÓPRIA PROTEÇÃO LEGAL. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO ESTABELECIDO NA LEI N. 8.629/93 (ESTATUTO DA TERRA). PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. COMPROVAÇÃO, OUTROSSIM, DE QUE O RECORRENTE SE UTILIZA DAS TERRAS PARA O DESEMPENHO DA ATIVIDADE AGRÍCOLA, BEM ASSIM DE QUE HÁ VINCULAÇÃO ENTRE O DÉBITO E A ATIVIDADE PRODUTIVA. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DE QUE A TERRA É TRABALHADA PELA FAMÍLIA NÃO DERRUÍDA PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA CREDORA. PRESSUPOSTOS ATENDIDOS. RECONHECIMENTO DA IMPENHORABILIDADE IMPERATIVA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 0186803-97.2013.8.24.0000, de Forquilhinha, rel. Des. Tulio Pinheiro, Terceira Câmara de Direito Comercial, j. 22-06-2017);
“A pequena propriedade rural, explorada em regime de economia familiar, é absolutamente impenhorável, ainda que objeto de garantia real a financiamento agropecuário (REsp nº 230.363/PB; REsp nº 261.350/RS)” (REsp n. 1135774/RS, rel. Ministro Luiz Fux, DJe de 14-5-2010). “Há que ser reconhecida nulidade absoluta da penhora quando esta recai sobre bens absolutamente impenhoráveis. Cuida-se de matéria de ordem pública, cabendo ao magistrado, de ofício, resguardar o comando insculpido no artigo 649 do CPC. Tratando-se de norma cogente que contém princípio de ordem pública, sua inobservância gera nulidade absoluta consoante a jurisprudência assente neste STJ” (STJ, REsp n. 864.962/RS, rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 04-02-10) (Apelação Cível n. 2010.045027-5, de Jaguaruna, rel. Des. Rodrigo Antônio, DJe de 26-5-2011). (Agravo (§ 1º art. 557 do CPC) em Apelação Cível n. 2010.050822-2, de Rio do Campo, rel. Des. Salim Schead dos Santos).
Concluindo, ainda que o imóvel (“PPR”) seja dado em garantia de um contrato ou de uma cédula de crédito para financiamento rural, ele merecerá imunidade (se estiverem presentes todos os requisitos aludidos), uma vez que o Estado de Direito, com a legislação em comento, preferiu, claramente, proteger a atividade rural (tão importante para o País) e o agricultor (porquanto este já enfrenta diversos riscos como: juros de financiamento altos; instabilidade do tempo e do preço de seu produto nos mercados).
[1] Há exceções previstas em lei, como para garantir e pagar dívidas de IPTU ou condomínio.
[2] A Constituição Federal de 1988, prevê em seu artigo 5º, XXVI: a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;
E o Código de Processo Civil brasileiro de 2016 dispõe: Art. 833. São impenhoráveis: VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
[3] Ementa do Agravo de Instrumento n. 2011.059384-6, de Ituporanga, Relator: Des. João Batista Góes Ulysséa, TJSC.
[4] Quatro módulos fiscais corresponde a 56 hectares na região do Município de Forquilhinha-SC, pois assim reconhece o acórdão relatado pelo Des. Odson Cardoso Filho, ao apreciar o agravo de instrumento n. 2013.024675-4, em 11/7/2013: […] o Anexo Único da Instrução Especial n. 39/90 do mencionado Instituto regulamentou que o módulo fiscal, no município de Forquilhinha (código 809187) é de 14 ha (quatorze hectares), o equivalente a 140.000 m² (cento e quarenta mil metros quadrados). […] a limitação do parágrafo único do Código Florestal é igual a 4 (quatro) módulos fiscais – ou seja, 560.000 m² (quinhentos e sessenta mil metros quadrados) […]